O AMOR EXISTE (Sangue). Maternal. Paternal. Filial. Fraternal. É das vísceras. Do sangue. Do elo químico. Da interdependência, ainda que à distância, mar e montanhas. Da carne condicionada. Pode-se até insultar o pai. Desrespeitar a mãe. Matar o irmão. Mas o amor, não. Esse vai pulsar até o fim, insuflar dor e ternura, glória e culpa, até o leito.
O AMOR NÃO EXISTE (A priori). O romântico, que ainda rege a ânsia predominante, é truque. O amor que se instala a priori, predestinado, à primeira vista, e encaixa as “almas gêmeas”. Não, esse não existe. Existe a empatia. A paixão. O tesão. Amizade. Companheirismo. Oxitocina nos miolos, a droga que cria a ilusão de um entrelaçamento completo, absoluto, que favorece à consumação do ato e à procriação, para o bem-estar e a proteção (temporária) da prole.
O AMOR EXISTE (O gene). Por si. Pelo “Eu”. Pelo elo com a mama, a ama, o leite, quente, mamãe. O amor pelo outro, sim, mas só na busca incessante, desesperada, de que o outro ame aquele “Eu” que não vejo. O amor que diz: por favor, não rompa o elo. “Ama o próximo como a ti mesmo”. Incrível: a religião, involuntariamente, confessa o egoísmo fundamental, o princípio de vida, a alta filosofia e a psicanálise. O gene egoísta, o instinto de autopreservação, a consciência do caos que é o mundo exterior, obriga a amar o outro.
O AMOR NÃO EXISTE (Real). Amor é uma abstração. Algo que descreve uma promessa improvável, que se mantém idealizada mesmo quando tudo termina. A equação é: você me ama mas não gosta de mim, não me tolera, não me quer. Adeus, mas te amo. Então, fica o amor, lá (onde?), suspenso como um balão de sonho, numa projeção do vazio, muleta para negar o desamor, esse sim, componente lógico do real, do qual se foge como o diabo da cruz.
O AMOR EXISTE (Onde?). Por Deus, esse amor animista. Projeção possível da morte do amor-próprio. Eu não me amo. Ninguém me ama. Ninguém me quer. O outro sumiu, e eu, por consequência, não existo. Deus, sim. Deus, salva o amor egoísta que me apega à vida. Deus é o outro, absoluto. Onde? Aqui. Nos miolos.
O AMOR NÃO EXISTE (Em si). O amor é uma palavra. A palavra existe. Não a coisa em si. É o nome de um conjunto que abrange camaradagem, afeto, solidariedade, compaixão, vontade de ajudar e a necessidade do feedback, combustível ao amor-próprio e antídoto à culpa.
O AMOR EXISTE (Síntese). Como construção, sim, até o amor romântico. Se a paixão persiste, a faísca do tesão (ainda que evocada, transfigurada, fantasiada) persiste, a entrega a um plano, um projeto ao longo dos anos, persistem, então erguer-se-á um amor que é a síntese do sacrifício, a economia da felicidade, a constatação do dever cumprido. É como no diálogo do velho casal em “O violinista no telhado”. “Você me ama?”, ela pergunta. “Se eu te amo?”, ele responde, surpreso. Então, eles refletem. Analisam tudo o que fizeram. O quanto trabalharam para trazer o leite dos filhos. O quanto se anularam. O cuidado mútuo. A paciência infinita. Os suspiros. E concluem: após 40 anos juntos, assumindo tanto peso, como pode ser que eu não ame você, e que você não me ame?
O AMOR NÃO EXISTE (Persiste). Amor é um dogma. Uma teoria sem descrição. Um conceito sem conteúdo. Por isso se presta a todas as categorias: amor a si, amor ao outro, amor ao grupo, amor à causa, amor à crença, amor ao mito, amor ao hambúrguer, amor à vida, amor à morte, amor ao ódio. O amor não existe. Ele persiste.
O AMOR EXISTE (Arte). O amor existe. À criação. Ao encontro com o fogo da ilusória invenção. Pode não haver a invenção. Não há prova de que haja algo novo. Mas há o fogo. O desejo do nó que vira o fio. Do encontro com o discurso sem palavras. Com o indizível. Com o lampejo do real que a tudo foge, mas que está entre as pausas, no silêncio, no voo cego entre a vigília e o sono, quando a imagem pressentida de alguma verdade, nem que seja o vislumbre do ser, se insinua, e o mundo, por trás da cortina de névoa, exibe figuras confusas, harmonias modais, dissonâncias, uma outra vida, inacessível, mas imanente.
O AMOR NÃO EXISTE (Desamor). O amor não existe. Existe o desamor, irmão do vazio. É dele que nasce a utopia do amor como força superior, arca que abarca e abraça a esperança de se aninhar no útero do bem-querer e nunca nascer, para que a eternidade vença o medo da pós-vida, quando nem a paz, nem a dor serão perceptíveis, mas o mundo continuará a existir, e nós na memória dele, na voz de quem diz que amou, de quem decerto desamou, e de quem esqueceu de si mas murmura ecos do passado.
O AMOR EXISTE (O cão). Existe o amor por um animal. Por um cão. Talvez não. Existe o amor do cão pelo mestre. Que não o merece. Um amor no qual o interesse (pelo alimento, pela água, pela proteção) e o medo (a necessária submissão ao mais forte) são suplantados por uma euforia sem razão por aquele que é, de fato, o carrasco. O amor pelo cão é, na verdade, gratidão por este amor desmerecido: quem pode, de fato, gostar de mim incondicionalmente senão um cão? Quem ficará atado a meu túmulo, por nada, sem água, comida, sem afago? O cão. Só o cão. Os outros, a mulher, a mãe, o pai, o amigo, vão se arrastar, se muito, uma vez por ano ao cemitério, suados, e dirão duas palavras. O cão, se puder, morrerá ali. De amor.