I.
Quero devolver-te
Devolver você a si própria
Imaculada, inteira, tépida
Restaurar caco seu
Que ainda fere
Deixa te devolver esses livros
(Sangue de tinta sob a pele de papel)
Que me prenderam nos teus escritos
Que surrupiaram meus suspiros
Contos e peças
Que conteram (contêm)
Pedaços de paz e vidro
Devolver-te-ei aquelas mensagens
Digitadas no calor
De algo que não sabíamos o que era
Aqueles pedaços de presente envelhecidos
Aqueles instantes de faiscar futuro guarnecidos
E se desfazem, diluídas em códigos e números que, como é comum de nós, não se diz nada a ninguém, e se perdem na eternidade de um átomo ou dois
Assim como esses algarismos isolados que somos numa folha de rascunho
Deixou muito
E aqui queria ressarcir-te das juras e beijos
De devolver os poemas e gemidos
Os sussurros e os gritos
Os olhos fechados e as pernas abertas
O gozo, os arranhões e o suor
O fôlego, o encaixe e a calidez aprazível
Dilatado, poroso e pífio
Do qual não sentiste nada
Da cintura pra cima
Te retorno as canções
Te retorno as viagens
As fotografias de enfeitar vitrine
Cada gota daquelas cascatas
Cascatas que desaguam primeiro de mim
De dentro pra fora
E para dentro novamente
Engolfado até o último sopro de vida
Que quase me abandonou para ouvir
Tuas canções na eternidade…
Cascatas e sal dos pélagos
Que me renasceram
Em um infinito efêmero
Os sorrisos, os beijos…
Esses foram devolvidos
No mesmo instante em que emergiram
Pois quando beijamos
E o sorriso aponta
Nos livramos do egoísmo
De outorga ao outro
E, com o outro, nada nos pertence de fato
O nosso beijo, o nosso sorriso
Existiram por si só num instante que pertence à eternidade
E a ela cabe o destino de tal átimo
Que achar que deve dar
E parte de mim devolver
O empréstimo de você
Que precisei pagar
II.
Me transmuto e volto no tempo
Converso com artistas do presente e do passado
E busco neles traços tão perfeitos quanto os teus
Desconheço
Sigo uma caminhada descompassada
Tropeço e congelo no átimo curvo do que eu já esqueci
As canetas espalhadas pela mesa
O café ao lado e a foto ao outro
Como um altar imaculado de um sentimento inócuo
Olhos que me fitam e eu os fito em retorno
Mais um gole do café, já morno
Recordo as sensações de ter suas pernas enroscadas nas minhas
A textura do seu cabelo entre os meus dedos
E a temperatura é quase a mesma
Deslizo os olhos na busca em te gravar
Registrar, esculpir, escrever
Como um braile, leio cada pedaço seu
E, após o toque, são pedaços nossos
Os recolho e os abençoo
E me vejo de volta no altar
Outro gole de café e eu ignoro as batidas na porta
Imerso em memórias da tua respiração
As lembranças chegam como um morador em casa nova
Irrequietas, desbravadoras, tímidas e calorosas
Meu peito se sente habitável novamente
Me alimento dessa morada que me serve o suor e o sangue à mesa
Serve o prazer à cama, onde se bagunçam os corpos e os lençóis
As pernas bambas e o suspiro como o de um recém-nascido
Enchendo os pulmões pela primeira vez
E por quantas vezes mais preencheríamos os espaços entre os nossos olhos?
Amanhã é segunda, com os lençóis estendidos
E entendo o quanto as loucuras nos custam:
O preço de uma vida com sentimentos borbulhantes
Ventos devastadores que secam os lençóis e afagam o rosto
O fogo que queima o passado é o mesmo que aquece teu rosto ao ler esses versos
E o xadrez sempre ficou bom em você
Volto a falar com os artistas, todos mudos
As tintas já secas, sinfonias inacabadas
E só me resta a seiva
Sorver o que é morno e desejável
E quer ser encontrado
No brilho ocular ou no molhado de um beijo
III.
E de fato eu havia descoberto que essas portas eram apenas enfeites
E por trás delas não haviam muros
Pior que isso
Haviam os sonhos, as esperanças e as armadilhas
Coisas que criei no laboratório do tempo perdido
Eu me empurrava pra dentro
Eu acreditava naquelas coisas
Eu executava os meus planos e planejava portas novas
Na janela
Eu olhava pra fora
Eu via uma realidade embaçada
Incerta
E mesmo assim, disposto a me aventurar no limiar
“As voltas eram tantas e eu era o tonto”
Atravessa os cômodos e casas velhas
Acendia as velas pra iluminar o que eu não queria ver e as apagava de novo
Afinal
Eu sabia o que você queria
O que eu esperava
E eu encarava a porta do teu prédio
Outra porta que eu criei
E guardava tudo na gaveta de fundo falso
Falso talvez o fundo do que sentia
Sentia mesmo?
E guardava o retrato nessa mesma gaveta
E me retrato aqui
O perdão e a culpa
De quem cria as portas pra fugir do inevitável
De quem quer derrubar os muros a qualquer custo esquecendo-se que é vulnerável
E pula numa queda livre do não saber
E vulnerável eu venho
Sem saber que a tempestade vem
E com ela, você vem também
E ela passa, sem saber da força que tem
Você fica, sem saber da força que tem
E talvez nunca saiba
Mas eu digo
Fostes capaz de afastar o trovão
Os gritos de Deus e das mulheres de lá
E dos homens em mim
Eu olho as fotos e percebo
Que tu e eu ainda somos os mesmos
E eu me perco nos dias felizes de outrora
E sei que eles vão voltar quando você volta
Nesse registro de desculpas
Eis aqui esse meu retrato…
IV.
Eu me pego
Perguntando
Admirando seu olhar terno
Eterno
Quantos olhos já olharam os teus
E quantos realmente te viram?
Quantas lágrimas boas
Esse castanho profundo já derramou?
Quantas pessoas passaram
Em frente aos teus olhos
E os fizeram reluzir?
Quantos sorrisos
Se perderam ali
Num leve seduzir?
Ah! Esses olhos castanhos…
Quantos eu te amo?
E pensar que eu descobriria
Que o infinito vive
Num lugar bem menor do que a gente pensa.
Quantas vezes chorou de dor?
E de tanto chorar, adormeceu?
Por quantas vezes esse olhar
Ainda vai se esbarrar no meu?
Castanhos
Por horas, olho
Teus olhos
Fito