I.
Eu tenho um monte de sentimentos na mão que parecem pedaços de brinquedos que eu perdi e não têm nenhum encaixe…
Existe, no peito de cada um, altares construídos dedicados às lembranças que se tornaram, de algum modo, ruína ou salvação
Existem cemitérios inteiros com momentos lapidados em pedra, sal, suor e sangue
Há ainda peitos, costelas, vísceras que abarcam cidades inteiras, outdoors, placas, aeroportos, litorais e capitais
Atlântidas submersas em lugares que não sabemos mergulhar e não podemos trazer para superfície
Há caixas de pandora e mitologias várias
Cada lugar desse abriga um abandono ou dois, ventos gélidos e lobos famintos
Algumas vezes por dia, fazemos visitas a esses altares e cemitérios. Deixamos lágrimas, ajoelhamos e depositamos flores, pedaços de nós que eu sei e você também, não voltaríamos para buscar. Muitas vezes essas cidades nem nos pertencem. Somos governantas de casas vazias…
II.
Me desculpe
Eu sinto muito
E realmente sentia…
Sentia que as partidas não deviam ser desse jeito
Sentidas como rasgo no peito
Sentia como sente a grama sob os pés
A areia entre os dedos
Pleno, completo, envolvente
Sentia muito
Aqueles sentimentos que já não me pertenciam
Sentia a falta dos mesmos
Sentado em frente o espelho
A toalha branca jogada aos meus pés
Pés que também sentiram muito
Calejados, ardidos…
Mas que também sentiam que não podiam ficar parados…
Eu sinto tanto
Todo dia santo
Todo santo dia
Acendo velas
E salto as veias
Solto os leões
Acendo pedidos
A toalha branca e o incenso
Costas fatigadas
Os idiomas que me perpassam
E se vão
Desculpe
Eu sinto muito
Como só se sente uma vez na vida
Em cento e tantos anos
III.
Bombeiros estão escavando em busca de um corpo soterrado
O lamaçal e a enchente que desceram dos olhos podem ter o deixado sem respirar
O calor excessivo gerado pelo ódio que afastava seu caminho geraram queimaduras de 3°, 4°, 75° grau em seu peito com danos irreversíveis
Era um corpo soterrado sem parentes nem precedentes, em estado de putrefação e que ninguém daria falta
Os bombeiros vão embora, os jornais, os voluntários, os civis
A noite cai junto com a chuva e o corpo soterrado se pergunta se ainda haverá resgate às 3h da manhã
Por baixo da lama, das ferragens, dos destroços, o corpo estava soterrado de camadas de pele, de mentira, de amores, como uma grande cebola
E cada camada revelava uma parede mais grossa de ser transpassada
A verdade é que o corpo havia sido soterrado milênios antes da tempestade chegar
Em pequenas doses de colher de sopa, que uma a uma tombaram como uma grande caçamba de caminhão
Quando te partiram o coração a primeira vez, e a próxima, e a próxima, até que chegou o dia que você perdeu as contas
Perdeu também amizades, caiu de bicicleta, fugiu da cidade, e fugiu novamente
Quando teve que ouvir gritos cortantes, ver as costas se afastando pela rodovia e deu adeus da janela do ônibus
O corpo resolveu se soterrar para se proteger, carregando todas as bagagens que podiam ou não podiam
Abriu um buraco em si e colocou nele tudo o que o deixava mais vazio, pois com seu valor extinguido já não era mais alvo a vista
O corpo soterrado passa despercebido dos holofotes dos helicópteros e dos gritos por seu nome, inerte, sob as ruínas do mundo e os escombros de si
Transtornado pelo que veio antes e pelo que não pode suportar, pelo peso morto que ainda arrasta, pela gengiva que sangra e os joelhos que rangem
O corpo soterrado sofre lamúrias e indignações no silêncio da rua, e tua dor é o eco antes da última vela que apaga
IV.
Você não me quer por perto
Mas não quer que eu deixe as lembranças morrerem
E sabendo exatamente onde me encontrar
Me evita
Afinal
O que você quer?
A vida forçosamente
Plageia os versos dramáticos que compus
E arranca de mim
Os gritos deixados pela caneta
Até mesmo os que não escrevi
Em uma torrente de casos, casas, cascas, cascos duros e opacos
E eu já coço a cabeça
Respiro o ar gélido dos dias chuvosos
E toda essa inquietação
E a falta de dizer o amor
Nenhum mercúrio retrógrado arrancaria meus versos
Do mesmo jeito que nenhum Vênus foi grande o suficiente pra segurar o que sinto
A vida orbitava em rotas que eu já conhecia
Dava voltas e voltas
Afinal
O que ela queria?
As voltas eram tantas
E eu era o lunático
Cambaleante, turvo, entalado, desmesurado, infame e choroso
Eu pedalava sem realmente ver os caminhos
Respirava com dificuldade
O rarefeito de mim
A borda, o liminar, a aura
O resquício após cada desgaste
Eu era a carne e a navalha
Dando voltas no teu quarteirão
Em cada noite encarando o prédio
Uma porta que não se abrirá
Abrirá?
Afinal
O que esperava eu?
Eu assistia os filmes
Lia as legendas
Bebia os cafés
Secava a chuva
Abraçava os joelhos
Deitava no chão e olhava pra Deus
E ele me olhava de volta com a mesma curiosidade
Eu me olhava no espelho
O corpo molhado, morno
Acompanhava as gotas de água descerem a janela
O vapor dissipar
Já não conseguia entender minhas legendas, códigos, signos, cicatrizes
Decifrar os olhos castanhos
Sorver de mim o que de mim não era o outro
Perdido, encara-se o espelho como um semi estranho
Enxerga a vida, a carne, o outro, o Deus, o café, a chuva
Mas e a ti?
Afinal
O que de mim queria eu?